CIRCUNSTÂNCIA, CHAMADO E DOTE
Toda vida humana tem uma certa forma, que é dada pelas possibilidades que cada ser humano tem — ou seja, pelas coisas que ele pode fazer e pelas coisas que ele não pode fazer.
Um ser humano, por exemplo, não tem a capacidade de voar por força própria. Para voar, precisamos de um avião, de uma asa delta, enfim: não temos asas, não temos certas possibilidades por nossa própria natureza, não podemos fazer certas coisas que estão fora do nosso campo formal.
Existe algo, porém, que está na nossa mão. Algo para o qual podemos olhar e de fato conquistar — ou, se estivermos pouco atentos, deixar passar.
TALENTO, CHAMADO E CIRCUNSTÂNCIA
Na vida de cada ser humano, há três elementos a que todos deveriam prestar atenção. Todo mundo, de algum modo, tem de ter claros esses três elementos, para entender a forma da vida humana.
O primeiro desses elementos é o que eu chamo de dote, ou talento. O que é dote? Dote é uma certa habilidade natural, uma facilidade para fazer algo. Você pode ter um dote ou um dom.
O segundo elemento, muito importante, é o que eu denomino de chamado. Chamado é como uma convocação do coração, algo que você de fato se vê fazendo, uma atividade que você se enxerga fazendo, à qual você se sente inclinado.
Usando um exemplo pessoal: quando mais novo, percebi que eu tinha um dote para a matemática. Eu tinha muita facilidade com exatas, mas não havia um chamado, meu coração não estava ali, eu não sentia que estava perfazendo a minha natureza naquela disciplina.
O chamado é algo importante, e às vezes não nos atentamos a ele; mas também pode acontecer de a pessoa estar atenta só a ele. O chamado aparece para algumas pessoas; para outras, isso já não é tão claro. Pode ser que a pessoa não se sinta chamada a nada.
Existe um certo tipo de chamado que é o de estar sempre à disposição. Algumas pessoas não têm um chamado próprio, por assim dizer, mas desejam estar à disposição para servir aos outros, para facilitar a vida dos outros. Há pessoas que têm esse chamado, essa inclinação natural.
Eu tenho um certo chamado, há uma coisa em mim que arde. O meu chamado, na verdade, não é nem tanto de psiquiatra, mas de assistente social: eu vejo uma pessoa e penso: “ela poderia estar melhor”. É aí que está o meu coração. Esse é o meu chamado, e ele é muito claro para mim.
Pois bem. É muito comum que a pessoa tenha um talento (ou um dote, ou um dom) natural, mas se sinta chamada a fazer outra coisa. E aqui aparece o nosso primeiro problema, que é conseguir distinguir o que é fuga do que é resposta verdadeira. A pessoa pode, no final das contas, dizer que tem um chamado, por exemplo, para cuidar dos africanos pobrezinhos, e isso pode ser só fuga do terceiro elemento que a gente tem de observar.
E o terceiro elemento, tão importante quanto os outros, chama-se circunstância.
A circunstância é composta justamente desses elementos ambientais, de pressão social. Às vezes a circunstância do sujeito é a seguinte: o pai é advogado, com uma banca de advocacia enorme, e ele vai herdar tudo caso se torne advogado. Mas o rapaz pensa assim: “Meu coração não arde muito quando eu faço isso, eu não me sinto chamado a ser advogado. Mas tenho um certo talento para a coisa, tenho um dote natural, talvez eu tenha herdado do meu pai… não é o que faz meu coração arder, mas tenho um dote”. Então esse sujeito tem dois pesos a considerar: o peso da circunstância e o do dote, ainda que não tenha aquela coisa que arde no coração.
A SUPERVALORIZAÇÃO DO CHAMADO
Hoje em dia existe uma supervalorização de um desses elementos, que é o elemento do coração. Por toda parte se ouvem coisas como: “Você tem de fazer aquilo a que se sente chamado a fazer”. A verdade é que isso é balela. Quem pensa assim ainda não entendeu o que é a vocação verdadeira neste mundo concreto.
No mundo concreto, temos de olhar para essas três coisas: circunstância, chamado e dote. Se você olhar apenas para a inclinação do coração, as chances de se frustrar são enormes. Se a sua circunstância concreta não for favorável, e se você não tiver talento, de nada vale ter o chamado. “Meu coração me diz que devo abandonar esse meu emprego público e vender minha arte na praia.” É, mas você não tem talento para fazer arte e mora longe da praia. Você não tem circunstância nem talento, então pouco importa o que você entende como o chamado do seu coração.
Nós não temos uma única coisa que faz nosso coração arder — a maior parte das pessoas nem experimenta isso.
Vamos pegar um exemplo muito comum: o do sujeito pobre. Ele tem uma circunstância, a da pobreza. Precisa ganhar dinheiro, se não o filho não come, se não os pais vão passar necessidade. É uma circunstância clara. E então ele pega ali um talento qualquer: chapiscar muro, pronto. Alguém o ensinou a fazer isso, ele aprendeu. Está feito! Esqueça essa história de coraçãozinho ardendo. Coração ardendo é um dos elementos, e nem sequer é o preponderante. É preciso ter isso na cabeça.
Eu sei que ouvir isso é ruim, não é gostoso, não faz cócegas no ouvido. Mas é a realidade. Se você não tem circunstância e não tem talento, fique onde está, pare de inventar moda. Os três elementos são absolutamente necessários: é circunstância, chamado e talento. Só mesmo os coaches motivacionais do Youtube querem que você acredite que basta seguir o “chamado”.
BENDITA LIMITAÇÃO
A limitação tem um aspecto negativo, é verdade. Se você é casado, não pode sair por aí se deitando com outras damas. Se você exerce uma certa profissão e tem pessoas dependendo de você, não pode resolver se mudar para Miami City de uma hora para a outra, ainda que tenha dinheiro para isso. Muita gente olha apenas para esse aspecto negativo da limitação e se julga muito injustiçada.
Mas a limitação confere um outro aspecto, mais fundamental, chamado forma. A limitação nos dá um contorno e uma forma. E só o que tem forma age. Só o que tem forma pode agir. A coisa que não tem forma não serve para nada.
Uma chave sem forma pode abrir qualquer fechadura, mas não abre fechadura nenhuma. Por quê? Porque ela é apenas mental. “Uma chave que não tenha nenhuma forma pode ganhar qualquer forma e abrir qualquer fechadura do mundo”. É, mas a verdade é que ela não abre fechadura nenhuma no mundo.
Limitar-se é fundamental. Estar limitado pela circunstância, pelo dote e pelo chamado é uma coisa maravilhosa. Você começa a contar — as pessoas começam a contar com você. Não existe tesão maior na vida humana do que estar limitado pela circunstância, pelo dote e pelo chamado.
Você não poder abandonar o seu posto, estar limitado, é uma maravilha! Você acorda com a sua função. “Eu vou acordar e vou servir no meu consultório, vou servir à minha família, vou servir na minha comunidade.” Você ganha força. Só os entes limitados têm forma e só o que tem forma serve para alguma coisa. Guarde na cabeça o exemplo da chave. Sempre. Se você está aí choramingando pelos cantos, “porque eu tenho uma circunstância, fui mãe solteira com 16 anos, tenho uma filha para criar”, graças a Deus! Você não vai ser uma idiota. Você vai ter responsabilidade na vida. Graças a Deus! Assim a circunstância pesa logo no início.
Para muitos, a primeira circunstância que faz com que o sujeito amadureça chama-se velhice: ele perde a saúde e aí então vê que não pode mais um monte de coisas. E aí o que acontece? Ele se deprime. Ou finge que continua sendo jovem eternamente. É uma tragédia!
Você jamais deve odiar sua circunstância, porque ela é um dado objetivo da realidade, é uma criação que não depende da sua cabeça. A sua circunstância é ótima, é maravilhosa. Você está desempregado, mora em uma cidade que não tem oportunidades, está todo ferrado? Essa é a sua circunstância, portanto é maravilhosa. Ela o limita na forma que você precisa assumir para poder ter força no mundo. Quando você não tem opção, a sua vida anda.
Então, olhe agora para a sua vida e faça o seguinte: entre na sua circunstância. E, se você tiver um talento mas sentir que não se realiza ali — se estiver faltando o chamado —, faça aquilo mesmo assim. Porque, se você não tem um chamado claro no seu peito, o risco de ser mera fuga é enorme.
Não se esqueça disso: talento ou dote, circunstância e chamado. São esses três elementos. Não caia na armadilha de observar só o elemento do chamado. Esse é apenas um dos elementos, e não é o definitivo. Cuidado com isso.