COMO AMAR ALGUÉM
O psiquiatra austríaco Viktor Frankl diz que, para encontrar o sentido da vida, é preciso aceitar o sofrimento inevitável, amar uma pessoa e servir a um ideal. Ele afirma que quem tem essas três coisas está blindado e, mais cedo ou mais tarde, encontrará o sentido da vida: essa pessoa está dentro do sentido da vida de algum modo.
Vamos falar sobre o segundo ponto dessa tríade: o amor a uma pessoa.
No nosso tempo, o amor a um outro é algo que, se não está vulgarizado, está esquecido. No sentido profundo do termo, ele é necessário para que você seja humano e esteja dentro do sentido da vida. Muitos não encontram o sentido da vida, vivendo à margem da satisfação plena, do viver profundo, porque não conseguem olhar para um ser humano e se debruçar sobre ele com o elemento de amor profundo.
Agora não é o momento de discorrer sobre a natureza do amor, sobre o que ele é. Basta registrar que o amor não é apenas um sentimento, mas um condensado de múltiplos sentimentos. Existe, sim, um elemento de sentimento, mas existe algo a mais que está para além do sentimento.
No entanto, o ponto principal, que nos interessa aqui, é que existe um modo adequado de se relacionar com um outro ser humano — e que, sem isso, qualquer palavra que possamos dizer sobre o amor será em vão.
O MODO PROPRIAMENTE HUMANO DE SE RELACIONAR COM O OUTRO
É preciso enfatizar que existe um certo modo de se relacionar com o ser humano — e que, quando você se afasta desse modo, já não está mais numa relação pessoal, mas numa relação com um objeto.
Quando você olha para uma caneca, num lance de olho já entende qual a função dela, para que serve, do que é feita. Você olha para esse objeto e pensa: “É feita de cerâmica; se cair no chão, quebra; serve para colocar café, água etc.”. Num relance de olho, você abstrai a função da caneca. Por assim dizer, ela está patente para nós: seu universo interior está absolutamente revelado. Ela não se disfarça, não se esconde, não tem nenhum outro elemento além de sua forma própria para se comunicar conosco. Com um lápis é a mesma coisa: pego o lápis e sei para que serve, sei como vou utilizá-lo.
Por outro lado, uma pessoa é completamente distinta de uma caneca e de um lápis. Pare para pensar, que isto aqui é um exercício profundo.
Uma pessoa se distingue maximamente dos objetos. Quando você está olhando para mim, por exemplo, você não sabe exatamente qual vai ser o meu próximo movimento. Com um olhar, você não apreende todas as minhas funções; pior ainda, você não apreende tudo o que se passa no meu mundo interior, não vai me conhecer somente com um lance de olho. Você precisará estar atento, me ouvir, me perceber; eu vou precisar comunicar o meu mundo interior para você.
Aqui já aparece uma grande característica das relações propriamente humanas, que é uma certa capacidade, uma certa afinidade que precisa existir para que a comunicação se estabeleça.
Se, numa relação – de marido e mulher, de mãe e filho, por exemplo –, você aparece como uma porta, ou com uma espada na mão, o outro simplesmente não vai se comunicar com você, não vai falar, vai se esconder.
Ao fazer isso, você já perdeu uma parte importante do que é a relação entre humanos. O outro de algum modo se fecha, vira um cisto; e aí perde algo dessa característica de pessoa e começa a ganhar características de objeto. Ou seja, ele não tem mais certa afinidade, uma familiaridade para comunicar o seu mundo interior, porque você apareceu na relação com uma espada fechando o outro, fazendo julgamentos. Assim, as pessoas que são muito críticas, que estão sempre julgando os outros, reclamando de tudo, ao aparecerem no ambiente provocam nos outros, de alguma maneira, um fechamento. Com isso, a natureza da relação passa a ser perversa e anômala.
Você aparece na vida do outro, não tirando dele o que ele tem de mais pessoal e humano, mas lidando com o outro como se ele fosse um objeto. E como você lida com um objeto? O objeto serve para cumprir uma função na minha vida. Para que uma caneca serve? Eu jamais perguntei para uma caneca se ela aceitaria receber a água que eu jogo dentro dela; seria uma loucura. Nunca fiz isso com uma caneca, e nunca faria, porque a natureza do objeto está aqui só para me servir. Ela só cumpre um papel. Eu jamais pergunto a uma caneca o que ela tem dentro de seu mundo interior; jamais tento intuir como poderia extrair o que a caneca tem de melhor.
Ora, na relação com uma pessoa é precisamente o inverso. Na relação pessoal precisamos aparecer na vida dos outros sempre levando em consideração o que chamamos de mundo interior. O outro tem um mundo interior que de algum modo precisa ser comunicado e posto na relação. Se aparecemos na vida do outro fechando esse universo, quer porque julgamos demais, quer porque estamos desatentos demais, objetificamos a outra pessoa. Dito de outro modo, ela não aparece para nós como pessoa, e a nossa capacidade de amar diminui muito.
UM EXERCÍCIO PARA A VIDA TODA (E PARA COMEÇAR JÁ)
Como dissemos, amar uma pessoa é um dos elementos dados por Viktor Frankl para você entrar no sentido da sua vida. Em outras palavras, para você descobrir o sentido da sua vida, a felicidade possível neste mundo, é preciso o exercício da atenção, o exercício de você olhar para a pessoa e querer tirar dali o seu universo interior. Você precisa olhar para a outra pessoa e entender que lá dentro há um mundo interior que precisa ser revelado.
Se começamos a estabelecer relações humanas sem olhar no olho, sem a capacidade de ouvir – e quando falo de relações humanas, não estou falando de coisa abstrata, mas de relação com o marido, com o noivo, com o filho, com o namorado, com a namorada, com a sogra –, se entramos numa relação de costas, já sabendo o que vamos falar e o que queremos ouvir, estamos na verdade lidando com a pessoa como se ela fosse um objeto. Eu entro na relação com um lápis já sabendo como vou usá-lo e como vou descartá-lo.
Mas se, no jantar em família, eu entro com a boa disposição de ouvir, perguntar, comunicar com simplicidade o que vai no meu peito, pedir o ketchup para colocar na pizza olhando no olho da pessoa, eu começo a agir de modo propriamente humano. Se, por outro lado, entro nessa relação de jantar em família já fechado, cheio de coisas da minha cabeça, só querendo exibir quem eu sou, sem ouvir o outro, sem o elemento de pausa, de calma, para estabelecer uma relação propriamente humana, estou no caminho da infelicidade e estou vivendo à margem do sentido da minha vida. Isso porque um dos elementos fundamentais do sentido da vida, segundo Viktor Frankl, com o qual concordo, é amar uma pessoa.
E como amar alguém se você não tem a capacidade propriamente humana de tocar no universo interior, de tocar no mundo interior da pessoa? Você não vai amar uma pessoa; no máximo, vai conseguir amar um objeto, e amar um objeto é sempre inferior a amar uma pessoa, porque objetos são substituíveis; pessoas, não. Imagine sua mãe: ela é única e possui um elemento de pessoalidade que não é intercambiável. Só ela é ela e seu universo inteiro. Portanto, sua personalidade é única. Perceba que sempre ficamos mais infelizes quando estamos fechados, ou seja, quando perdemos a nossa própria capacidade humana. Isso é sempre assim.
Então como nos livramos disso? Como começamos a nos inscrever propriamente nesse mundo humano? Recrutando a nossa força. Um dos meios para isso é olhar no olho do outro, comunicar com calma o que está dentro do peito, ouvir o que a pessoa tem para contar, querer descobrir o que vai por dentro da pessoa.
Um exemplo de exercício: se você tem filho, ou convive com criança, pode ficar um tempo olhando para ele. Você vai entender a maravilha que é a criança revelar sua personalidade, descobrir o mundo, tatear o universo.
Esses dias eu estava na varanda olhando a piscina e vi uma criancinha mergulhando. Ela passava por baixo da perna do pai e depois voltava, mergulhava e passava de novo. Isso é uma maravilha! Você olha e pensa: “É uma pessoa, é uma pessoinha de 6 anos, e está aprendendo uma função, a função da natação. Que coisa bonita, a relação de confiança que ela estabelece com o pai. Ela está passando por baixo da perna do pai sem maiores preocupações”. A perda desse olhar poético, profundo, diante da realidade, é uma das grandes explicações para a infelicidade, a ansiedade e a depressão generalizadas do nosso tempo.
Olhar a vida humana de desconhecidos é muito importante. Eu estava olhando aquela criancinha, nem sei quem era, e estava vendo um ser humano se relacionando com outro ser humano. Estava olhando com olhar de gente, que é um olhar não distraído. Eu poderia estar na minha varanda ouvindo um batuque – tudo bem, também pode ouvir batuque –, mas não estava. Percebam que, se nos esquecemos dessa função possível da alma humana, que é olhar por um tempo para outro ser humano e se impactar com aquela força, com aquela energia da vida, perdemos também a capacidade de amar, a capacidade de sermos humanos.
A partir de hoje, vamos tentar fazer isso. Sei que é difícil. E por que é difícil? Porque toda hora somos convocados a lidar apenas com objetos. Assim, a própria relação humana é objetificada de certa forma. Por exemplo, se estaciono meu carro na rua e o flanelinha vem me cobrando, eu estabeleço com ele uma relação muito funcional; não é uma relação propriamente humana. Ele vai guardar meu carro; no entanto, se eu guardasse o carro dentro de uma caixa, estaria guardado também. Trata-se de uma relação que não é propriamente humana. Que triste isso, que tristeza, porque passou um ser humano na minha frente e eu deixei escapar a preciosidade da vida humana. Tratei aquele flanelinha como uma cancela, como uma caixa, como um outro qualquer, como um objeto qualquer. Que tristeza!
Todo dia precisamos nos ressentir de algum modo e pensar: “Estou amputando a maravilha do ser humano, pois estou olhando para as pessoas sem vê-las realmente”. Estamos numa comunidade e num tempo em que somos convocados a todo instante a despersonalizar as pessoas; todos nós, eu, você, fazemos isso o tempo todo. Então, já que estamos expostos a isso, e não há muito remédio, quando o flanelinha aparecer, ou quando depararmos com um sujeito no elevador que nunca vimos, não podemos nos dessensibilizar. Aí está o ponto central. Por mais que, na prática, às vezes seja inadequado você abordar um ser humano como ser humano – como é que você vai fazer isso no elevador em três, quatro segundos, do primeiro ao segundo andar? você não tem muito o que fazer –, não podemos nos dessensibilizar.
Se você é um sujeito que tem vida espiritual, uma forma muito adequada de agir é rezar por aquela pessoa que está ao seu lado; ore por ela rapidinho. Na concretude da relação, na prática, eu não posso falar com ela, mas posso abordá-la como um ser humano. Posso orar pela pessoa, rezar por ela, tocar a transcendência da outra pessoa por meio da prece. Ora, eu nunca faço isso com a minha caneca. Imagine que coisa extraordinária se eu rezasse por essa caneca. Jamais fazemos isso por objetos. Um elogio funciona também. Às vezes eu faço isso e digo: “Chapéu bonito; que óculos bonitos”. O fato de ela estar usando aqueles óculos significa que ela os escolheu; ao elogiar, você valorizou um elemento humano.
Não podemos nos dessensibilizar, e cada um de vocês terá de descobrir o seu caminho para evitar que essa dessensibilização ocorra.
Uma das grandes fontes de dessensibilização é a estrutura escolar. De um lado, há uma criança de 11 anos sentada junto a outro ser humano de 11 anos; do outro lado, um professor passando conteúdo absolutamente desinteressante para elas. Quando a criança vai conversar com outro ser humano – o que de fato é atraente, pois há o universo interior do amigo a ser explorado, há um amigo ao seu lado, uma pessoa que tem seus dramas, seus desejos, tem a sua graça, tem a sua comédia, com a qual é possível entabular uma relação, a relação mais profunda que existe –, o que acontece? O professor vai e corta: “Não pode falar! Não pode falar com o amigo!”. Você não pode se interessar pelo ser humano! O pior é que tem de ser assim mesmo, porque tem de haver um princípio de ordem para que o professor possa passar o conteúdo. Eis aí a primeira experiência de despersonalização a que todos nós fomos sujeitos.
Todo mundo que frequentou ambiente escolar passou por isso — uns mais, outros menos. Eu estudei num colégio montessoriano raiz, então o que mais importava ali era a relação humana, e menos o conteúdo. Mas normalmente não é assim. Não estou dizendo que dá para ser de outro modo: o professor vai ter de mandar o moleque calar a boca mesmo, porque precisa passar o conteúdo. Contudo, ao fazer isso, o professor já lesou um elemento da pessoalidade. Está ensinando que o ser humano interessa pouco, o que interessa é o utilitarismo. “Você tem de decorar para passar na prova, hein! É isso aqui que importa, porque, se você tirar uma nota baixa, repete; e se repete, vira burro; e se for burro, não passará em nada, e sua vida não vai para a frente”. Com isso, inverteu-se tudo.
Mas nós somos adultos; e como é que fazemos? Temos de começar a colocar elementos de pessoalidade nas relações: olhar no olho, fazer uma prece, saudar o anjo da guarda, elogiar a pessoa. Com o passar do tempo, vamos notando que essas pequenas ações, que não têm nada de estranho, vão dando para nós certa densidade de vida; o coração aumenta; passamos a ter a capacidade de ser mais felizes, e até mesmo de amar mais. Aqui está o ponto central. Às vezes já queremos chegar falando de amor, amor, amor. “Amor é se sacrificar pelo outro, é querer o bem do outro etc.”. Isso tudo é verdade, mas, se você nem sabe que há uma pessoa na sua frente, jamais vai se sacrificar por ela e querer o bem dela. Por quê? Porque há só uma caneca na sua frente, há só um lápis. Ao fazer isso, aparece uma fraqueza na capacidade de amar; depois, aparece uma fraqueza nos relacionamentos; por fim, o sentido da sua vida some, e a infelicidade e a angústia começam a aparecer.
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