SERÁ QUE VOCÊ É UM SABICHÃO?
O título desse livro pode ser engraçado, mas ele é muito útil para nós: Você não é tão esperto quanto pensa, de David McRaney. Trata-se de um livro de psicologia que fala sobre alguns vícios, sobre 48 vícios para ser mais exato, ou o que o autor chama “48 maneiras de se auto-iludir”.
O livro está repleto de informações interessantes, sobretudo para nós que vivemos no Brasil, e também para aqueles que estão em uma função de liderança, seja educando crianças, seja tocando uma empresa.
Por quê? Porque um dos assuntos do livro – na verdade o grande assunto – é a auto-ilusão: o assunto da falta de conhecimento, da falta de capacidade de se conhecer, da falta de possibilidade, muitas vezes, de se conhecer.
Por que o autor fala em falta de possibilidade de se conhecer? Porque existe um efeito, sobre o qual McRaney fala lá no meio do livro, que é o seguinte: quanto mais burra a pessoa é, quanto mais desatenta uma pessoa é, quanto menos comprometida com o conhecimento, quanto menos comprometida com o tal do “autoconhecimento”, mais vai se tornando ignorante. Quanto mais a pessoa vai se tornando ignorante, menos ela consegue reconhecer que os outros sabem coisas que ela não sabe. Trocando em miúdos, quanto mais ignorante a pessoa é, mais ela se vê como sabichona.
Esse é um fenômeno psicológico que acontece em uma série de círculos sociais, principalmente nos ambientes universitários. Isso aconteceu comigo durante a minha formação. Havia professores que, por terem um título, por serem mestres, doutores, por serem professores-adjuntos, ou titulares de certa disciplina, achavam que sabiam tudo sobre aquela disciplina. Quando percebia que um aluno, por curiosidade ou por convívio com aquele tema, sabia mais do que ele, o professor ou não dava ouvidos ao aluno ou, pior, tentava aniquilá-lo.
É claro que nisso há um bocado de vaidade, que é um fenômeno do amor-próprio ferido. A vaidade está presente nos momentos em que uma ignorância fica patente. Porém existe outra coisa mais profunda e que, muitas vezes, é ignorada: o sujeito que desconhece certo tema tende a achar que ele não existe. Trata-se de uma falha mental gravíssima e que está absolutamente disseminada, sobretudo no Brasil. O sujeito ignora tudo o que está fora do seu alcance, da sua percepção; ele não tem a humildade, não tem a percepção de que existe um universo ainda a ser descoberto que existe um ponto cego, ou que existe um território escuro que ele pode penetrar na base do esforço, que ele pode penetrar na base do desejo, na base da atenção. Essa é a tragédia do sujeito que vira escravo de suas próprias opiniões idiotas, e já falei sobre isso em uma live.
E o que acaba acontecendo a partir daí? Tais sujeitos, em posição de autoridade, acabam muitas vezes virando tiranos. Eles rebaixam todo um estatuto psicológico, rebaixam todo um estatuto social, rebaixam todo um estatuto antropológico daquela civilização. Isso foi algo que aconteceu aqui no Brasil nos últimos anos. Por indicações políticas, muitas posições centrais de governo, muitas posições centrais estratégicas do país foram ocupadas por pessoas que não tinham habilidade, não tinham capacidade, não tinham competência para estar naquela posição; uma posição técnica, muitas vezes. Em vários casos, as posições técnicas foram sendo ocupadas por indicações políticas.
O que isso acarreta? Tragédias. A pessoa é colocada numa função – por exemplo, construir uma ponte, furar um poço, participar de um projeto de avião – sem ter competência técnica para o assunto. O que acontece? Certas funções na vida não podem ser desempenhadas por pessoas indicadas politicamente; elas devem ser desempenhadas por pessoas que têm domínio técnico daquela área.
Quando uma pessoa é colocada em uma posição sem ter a competência técnica, lhe faltará a humildade necessária para fazer qualquer coisa dar certo. Ela acaba entrando dentro de algo chamado efeito Dunning-Kruger. Sem humildade, sem vontade de aprender o que acha que já sabe, a pessoa vai diminuindo a possibilidade de os outros se desenvolverem, de desempenharem uma função excelente, de continuarem se especializando, de continuarem melhorando, de continuarem evoluindo tecnicamente.
Isso é terrível.
Vemos esse fenômeno aqui no Brasil, pelo menos nos últimos 15 anos. E nós vamos percebendo, realmente, um emburrecimento do povo, o que é uma tragédia, uma tragédia civilizacional.
Precisamos entender que nós herdamos essa parte do tempo. Nós estamos inscritos nessa parte do tempo agora e não podemos nos sujeitar a isso. Quando nos sujeitamos a esse tipo de realidade, nós estamos, de algum modo, sendo cúmplices desse tipo de fenômeno.
Então, quando vemos um filho nosso submetido a professores ignorantes, temos de nos revoltar contra isso. Quando vemos que nós mesmos somos esses professores ignorantes, quando nós mesmos estamos em uma posição de mando e não dominamos tecnicamente o assunto, temos de nos revoltar, temos de nos rebelar contra isso. Nós precisamos querer nos desenvolver tecnicamente. Não podemos nos deixar dominar pela soberba, que, com seu canto de sereia, nos diz ao ouvido que nós já sabemos de tudo. E se você está em dúvida sobre a sua própria soberba, recomendo que assista a esta live.
Ao nos acomodarmos em uma posição que nos exige mais do que podemos oferecer, nós vamos lesionar o status do mundo. Esse é o tipo de situação que não passa em branco. O pagamento por esse tipo de atitude imprudente é muito alto.
As realidades de auto-ilusão descritas no livro Você não é tão esperto quanto pensa são terríveis. Elas matam uma capacidade fantástica, fundamental do homem: a capacidade de amar. Para que nós possamos amar, precisamos ter algum grau de ódio contra a auto-ilusão. Quando caminhamos iludidos sobre quem, de fato, somos – sobre nossas misérias, sobre nossas dificuldades, sobre nossas capacidades também –, nós não conseguimos amar. Isso porque, para amar, nós precisamos ser um centro agente. E se cairmos na auto-ilusão, não conseguiremos contar a nossa própria história e seremos vítimas incapazes de agir. Já falei sobre esse assunto em live.
Se não temos um centro agente, se não temos um mínimo de consistência no nosso núcleo – e uma parte dessa consistência vem por meio desse autoconhecimento possível –, não é possível se autoconhecer. Nem é desejável querer se autoconhecer, como um fetiche, e eu já disse em outra live como esse fetiche é prejudicial. Mas devemos desejar certa estabilidade da nossa personalidade. Caso contrário, não conseguimos amar alguém. Porque, quando não temos essa estabilidade, quando não temos a clareza sobre quem nós somos, se caminhamos sempre iludidos, se estamos em um processo de auto-ilusão, a pergunta que fica é: Ora, quem está amando? Quem pode amar? Certamente não nós, que não temos consistência.
Quando não temos consistência, vamos sempre padecer; vamos sempre nos frustrar; vamos, com muita dificuldade, exercer o ato do amor, que é o ato propriamente humano. O amor é sempre uma decisão, como já falamos aqui em outro momento.
Ora, para decidir, alguém tem de decidir. Se não temos essa centralidade pessoal, se estamos sempre auto-iludidos, porque nós não tivemos a valentia de declarar as próprias misérias, a valentia de declarar que não valemos grande coisa, vamos acabar nos perdendo, no fim das contas. E, quando nos perdemos, perdemos também a capacidade de amar.
Juntamente com isso vem uma série de desdobramentos. Quando perdemos a capacidade de amar por auto-ilusão, nos tornamos pessoas muito mesquinhas. Esse é outro fenômeno que sempre vai acontecer.
Quando perdemos a capacidade de não estar iludidos diante da vida, se temos esse exercício de vencer a auto-ilusão, se nos exercitamos na tarefa de vencer a auto-ilusão, porque temos um desejo de conhecimento das nossas misérias, das nossas fraquezas, das nossas capacidades, vamos nos tornando menos mesquinhos. Isso tem repercussões maravilhosas no mundo.
Quando estamos auto-iludidos, quando estamos auto-enganados, ficamos objetivamente fracos; nós podemos até acreditar que somos grande coisa, mas objetivamente, no mundo, ficamos muito fracos, porque não temos meios de ação. A força verdadeira, longe de ser apenas uma sensação subjetiva, consiste em dominar os meios de ação de certa tarefa; pode ser a tarefa de dar um soco em alguém; pode ser a tarefa de fazer um pão bem feito; pode ser a tarefa de cultivar um jardim bem cultivado; pode ser a tarefa de dominar o Excel, de dominar a capacidade de fazer uma planilha, de dominar a capacidade de fazer uma edição de texto, a capacidade de dominar os elementos da fotografia. Cada um sabe qual força precisa conquistar, e a gente sabe que a força, como já disse em live, está sempre à nossa disposição.
Quando estamos auto-iludidos, acabamos não dominando bem a técnica e ficamos com uma hipertrofia mental. Essa hipertrofia mental, essa atrofia do braço, ou seja, a atrofia da possibilidade dos meios de ação, nos transforma em pessoas mesquinhas. Isso porque, no fundo da nossa alma, começa a aparecer um temor, um desespero, um verdadeiro medo diante do mundo. Por quê? Porque o mundo está lá fora e eu não consigo me orientar nele. Não é que eu não consiga dominar o mundo (ninguém consegue dominá-lo), mas eu não consigo dominar sequer uma parte da técnica, uma parte da arte necessária para que eu possa me orientar no mundo.
Quando isso começa a acontecer, fico mesquinho, começo a dar apenas sugestões para as pessoas, que são sugestões de medo, são sugestões de terror: “Não faça isso”, “Não empreenda”, “Não se aventure”, “Não ame”, “Faça joguinhos com as pessoas que você ama”. Não são essas as sugestões estúpidas, mesquinhas, que todo mundo dá? O que não falta é expert em relacionamento que diz: “Se você for escrever mensagem de WhatsApp para ele (ou para ela), ele vai ver que você está no papo; vai ver que você está de quatro por ele, vai ver que você está amando. Então, ele não vai valorizá-la”. Que sugestão estúpida! Não faça joguinhos nunca na vida.
Domine-se. Domine uma parte da técnica. Domine uma ferramenta; qualquer uma. Aprenda a cozinhar, aprenda a tirar fotografia, aprenda elementos da marcenaria, aprenda os ofícios próprios do seu trabalho. Você vê que esses joguinhos se tornam odiosos, se tornam dispensáveis absolutamente, e você passa a se orientar melhor no mundo; você passa a não dar conselhos estúpidos, que, no fim das contas, são mesquinhos. Nós precisamos dar um basta aos conselhos mesquinhos.
Se estamos auto-iludidos, como esclarece o livro que estou indicando aqui, necessariamente vamos sempre dar conselhos mesquinhos para as pessoas. O que são conselhos mesquinhos? São aqueles que desencorajam os outros a tomar posse de sua própria vida. Com esses enganos fantasiados de conselhos, tornamos as pessoas irritadas e medrosas.
Essa é uma realidade do Brasil (e que vai se expandindo). Uma boa parte do Ocidente está assim. As pessoas estão muito suscetíveis, muito irritadiças. São pessoas que estão sempre com os nervos à flor da pele, por assim dizer. Não é verdade? Essas pessoas estão sempre com muito medo diante do mundo e não estão confortáveis no mundo. São pessoas que não sabem, exatamente, da onde pode vir o golpe: “Quais golpes me afetam? Quais golpes eu agüento? Quais golpes eu sei dar? Quais golpes eu preciso dar?”.
Bem, a maior parte de nós jamais fez esse exercício, porque a maioria caminha auto-iludida, porque não se enfrenta, porque não olha para o próprio espírito, não olha para a própria vida, não olha para a própria história. Temos de saber que não somos tão espertos quanto pensamos. Quando nos declaramos coitadinhos, em geral há uma treta de fundo aí; nós estamos querendo palmas, estamos querendo aplausos, estamos querendo que alguém venha mostrar como somos maravilhosos, queremos que nos demonstrem que não somos tão ruins assim.
Jamais demonstre as suas fraquezas para os outros. Nós temos de declarar para nós mesmos. Nós temos de saber onde dói, onde fere, onde somos fracos, onde não funciona. Aqui reside um ponto central. Ao fazermos esse exercício diário, vamos perdendo a auto-ilusão sobre nós. Quando perdemos a auto-ilusão, conseguimos nos orientar melhor no mundo, temos menos medo, ficamos menos medrosos, menos idiotas, no fim das contas. E aí conseguimos começar a realizar as coisas.
Isso acontece quando começamos a encontrar o sentido no nosso trabalho; começamos a encontrar o sentido na nossa família; começamos a entrar naquela dieta e não sair dela; começamos a cuidar melhor da nossa saúde; começamos a cuidar melhor do intelecto; começamos a cuidar, pela primeira vez, do nosso espírito. Assim, as coisas começam a funcionar, porque perdemos aquela realidade de auto-ilusão que pairava sobre nós.
E quando isso some, nós podemos, então, nos posicionar diante da vida, nos posicionar diante do mundo e dizer: “Estou aqui. Vou padecer, vou enfrentar. Vou poder realizar o que me cabe realizar, e não aquelas euforias, aquelas bolhas, aquelas amebas amorfas na minha cabeça. Não. Eu vou poder realizar o que eu, de fato, posso realizar”.
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