A UNIÃO MÍSTICA DA AÇÃO COM A CONTEMPLAÇÃO

Tenho visto que muita gente nestes últimos anos tem se aproximado da religião. O pessoal começou a frequentar a missa, a rezar o Pai-nosso, a dar esmola. Isso é excelente, ninguém duvida. Acontece que, por outro lado, em todas as civilizações, não se teve notícia de tamanha indolência, desconexão e de uma vida dupla como se vê no nosso tempo. 

Por exemplo, outro dia eu estava reassistindo àquele desenho animado da Cinderela, um dos grandes sopros demoníacos do nosso tempo, que é a idéia de que nossa vida é medíocre, triste e absolutamente oprimida porque temos os afazeres cotidianos, como passar roupa, costurar e lavar. Na história, passar roupa, costurar e lavar são o símbolo dos nossos afazeres cotidianos, então é também a planilha do seu escritório de contabilidade, a petição do seu escritório de advocacia, o receituário médico emitido para um paciente, uma obturação bem feita por um dentista. Esses são os nossos afazeres cotidianos, não só lavar e passar. O lavar e passar roupa é símbolo daquilo que fazemos todo santo dia de modo igual. 

Todo dia de modo igual a Cinderela precisava passar roupa, costurar alguns botões, limpar a casa…, igualzinho a mim, que preciso diariamente gravar aulas, atender pessoas, cuidar das crianças e da esposa, fazer as atividades religiosas que escolhi. Mas a Cinderela, no meio da opressão dos afazeres, espera na sua imaginação que um príncipe a resgate de todos esses tormentos e tragédias. É evidente que isso é um passo diabólico da imaginação. 

O QUE MARTA ENSINARIA À CINDERELA (E ENSINA A TODOS NÓS)

A paixão, o amor romântico como algo que nos livra da opressão odiosa das tarefas cotidianas, esse tipo de insuflação alucinada da imaginação, diferentemente do que acontecia em outros tempos, vira ocasião da perda da nossa própria vida, da nossa própria história. Você que está voltando a ter religião, ou que está fazendo a manutenção da vida religiosa, precisa estar ciente que o primeiro cuidado que uma pessoa do nosso tempo deve ter para ser digna de que Cristo lhe dirija a palavra é imitar a vida de Marta.

Recordemos a história de Marta e Maria. Maria estava aos pés de Cristo, enquanto Marta, sua irmã, trabalhava: assava o pão, fazia o chá, servia os convidados, passava o pano no chão. Em um certo momento, de um modo delicado e nobre, Marta fala a Cristo: “Senhor, o Senhor não percebe que minha irmã está aí simplesmente a Lhe olhar? ”, como quem diz “fala para ela vir me ajudar”. E Cristo lhe responde: “Marta, Marta, tu te preocupas com muitas coisas, quando uma só é necessária”. 

Veja, Cristo encontra Marta no meio do seu trabalho cotidiano bem feito. Marta não se queixava de trabalhar, pelo contrário, ela queria colocar a sua irmã dentro daquela atividade nobre. É necessário um passo da dimensão do trabalho cotidiano para a contemplação, e da contemplação para o trabalho cotidiano, como se fosse necessária uma união mística entre as duas coisas. 

Agora, o sujeito que começa na religião e não trabalha, não serve, não se dedica aos estudos, que foge das suas tarefas cotidianas, esse sujeito sequer é digno de que Cristo lhe dirija a palavra. Um sujeito mole, preguiçoso, vagabundo, que acha que tem religião porque vai à igreja de vez em quando desonra a própria religião e a vida espiritual, porque alguém terá de carregá-lo nas costas. Alguém tem de trabalhar, de tampar os buracos que ele deixa abertos, alguém tem de finalizar as atividades que ele não leva a cabo. A religião para ele é só fuga. 

QUANDO A UNIÃO ACONTECE

O primeiro movimento, portanto, é assumir a sério a nossa condição humana sobre a terra: é com o suor do nosso rosto que obtemos alimento, cultivamos o jardim, e isso com alegria e sem reclamação. 

Não seja o vagabundo da história, o preguiçoso que acha que Cristo está induzindo Marta a não trabalhar, a ficar sentada. Cristo não fala isso de maneira nenhuma. Tanto é assim que na cena posterior em que as duas aparecem, quando o irmão delas morre, a primeira que vê e contempla o Cristo no quintal é Marta, que estava trabalhando. Ela sai ao seu encontro, ajoelha-se e pede para Cristo trazer o irmão de volta.  

É evidente que Marta não é uma figura secundária, desprezível, que simplesmente levou uma bronca de Nosso Senhor. Muito pelo contrário, ela é uma das figuras centrais do Evangelho para todos nós que precisamos acordar todos os dias, cuidar da casa, do trabalho, da família e entregar algo bem feito. Não se torne essa pessoa asquerosa, essa verdadeira árvore de Natal cheia de bolas e penduricalhos de coisinhas da religião: você vai lotando o seu dia mais com superstições do que propriamente com atividades religiosas. 

Faça as suas atividades religiosas de modo oculto, simples, sem chamar atenção, mas um trabalho intenso, bem feito, sem fugas e desculpas. A graça, para agir, precisa da natureza: é necessário que ela encontre um homem inteiro. A graça precisa lhe encontrar trabalhando. 

Essas fantasias de Cinderela, essas insuflações da imaginação, que nos levam a odiar a atividade cotidiana, precisam acabar. A graça vai lhe encontrar trabalhando, assim como as palavras de Cristo encontraram Marta nos seus afazeres. E ela as ouviu, colocou para dentro e disse “é assim mesmo, vou trabalhar melhor ainda”. 

Trabalhar melhor é: sem deixar de entregar o pão de queijo, de esfregar o pano no chão, de servir um chá bem feito para as visitas, de entregar a planilha e a petição em ordem, a obturação realizada com esmero, sem deixar nada disso de lado, acrescentar o olhar transcendente. 

No caso da história, o olhar para o próprio Cristo, no nosso caso concreto, o olhar para Cristo através do cumprimento do dever que visa melhorar a si mesmo, pela conquista das virtudes, e aos outros ao nosso redor, entregando esse trabalho como oferenda diária que agrade a Deus. 

Vamos matar essas fugas. Nós somos Marta, nós ouvimos que uma coisa só é necessária: trabalhar bem, de olhos postos em Cristo. Essa é a coisa necessária. Não é abandonar as nossas tarefas, os nossos deveres, com desculpas asquerosas que podem ser revestidas de um manto de santidade decaída, podre, que para nós é só fuga. Então, olhos postos no trabalho e em Cristo, os dois juntos, na transcendência articulada com os nossos deveres cotidianos. Somos todos Marta! 

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