ADEUS AO AMOR DE BOSSA NOVA

Para entender porque você não vive um amor de peso, que lhe faça viver intensamente, vamos seguir um itinerário inusitado. Partiremos de um dos mitos fundacionais do amor profundo, presente na mitologia grega, e aportaremos na música que modelou uma certa superficialidade na alma brasileira. 

Não é à toa que a vida a dois nos nossos dias é tão cheia de fissuras quanto um barco que se despedaça ao relento sem nunca ser usado. Não nos interessam mais as travessias por mundos desconhecidos. A única coisa que buscamos é a garantia de uma vida de satisfações rasteiras: no máximo avistar a garota que vem e que passa num doce balanço a caminho do mar.

NA BARCA COM ORFEU

Se voltarmos à mitologia grega, encontraremos um sujeito chamado Orfeu. O próprio Vinicius de Moraes escreveu uma peça teatral sobre esse mito, chamada “Orfeu da Conceição”. É uma peça muito conectada com a transição do samba para a bossa nova, um ponto de entrada nessa música profundamente nacional, carioca sobretudo, que aparece na virada dos anos 60.

Vinícius de Moraes faz então uma releitura desse mito por meio de Orfeu da Conceição, com os elementos centrais da história original mais ou menos presentes na peça, e isso depois dá origem a um tipo específico de amor vivido por quem presenciou a transição do samba para a bossa nova.

Quando o Orfeu da mitologia grega cantava com sua lira, ele acalmava os pássaros e fazia dormir as sereias. Quem se lembra daquela história dos argonautas, na qual alguns sujeitos convocados por Jasão saem atrás do velocino de ouro? Orfeu fez  adormecerem as sereias que usualmente afundavam os navios. Um dos motivos pelo qual o navio conseguiu atravessar os perigos foi que o canto de Orfeu era tão poderoso, vinha de um lugar tão central que quem o ouvia conseguia tocar nas cordas mesmas do amor, fazendo ressoar uma sinfonia de harmonia, de delícias e de paz. 

Orfeu era esse sujeito, e em algum momento ele se enamora de uma jovem chamada Eurídice. Ela era belíssima, uma das mulheres mais encantadoras do mundo, então Orfeu se apaixona e derrama por ela todo o seu amor. Eurídice, justamente porque era muito bela, em dado momento é perseguida por um camponês chamado Aristeu, e tropeça numa serpente. Algumas descrições mencionam uma serpente, outras não, mas o fato é que ela morre.

Ao receber a notícia da morte de sua amada, Orfeu canta um choro que sobe até o Olimpo e faz com que os deuses desçam à Terra. O canto de Orfeu silenciou o mundo, só havia seu pranto diante da perda, da saudade, daquele coração rasgado, daquela esperança amputada brevemente, daquele amor que se perdeu ainda no início da sua maturidade.

Os próprios deuses do Olimpo se compadecem do pranto de Orfeu. E se compadece também Caronte, o sujeito que fazia a travessia da terra dos vivos para o trono de Hades, a terra dos mortos. Caronte, o guardião da barca, chorando, oferece algo novo, que jamais fora ofertado a nenhum homem: que Orfeu fosse até o mundo dos mortos procurar sua amada Eurídice. Orfeu, que amava Eurídice profundamente, entra então naquela barca sem saber se algum dia voltaria a ver a luz. Essas são as loucuras do amor, elas fazem com que entremos em barcas, muitas vezes enfrentando um terreno de morte, desconhecido, sem saber se voltaremos. 

O que é de fato a projeção amorosa senão entrar num território desconhecido? Entrar num território que pode nos levar a um certo tipo de morte? Ainda assim, aquele desejo, aquela esperança faz com que continuemos marchando nesse caminho.

EM BUSCA DO OUTRO

As pessoas que choram porque estão solteiras há anos, porque não conseguem se derramar numa vida amorosa, choram, na verdade, por medo de entrar na barca, choram porque não tiram da cabeça que o amor é uma canoa furada. 

O amor pode realmente ser um barco furado, mas como saberemos sem entrar nele? É para isso que existe esse território, essa abertura, é para que entremos com o coração, cantando um choro de saudade, de desejo, de projeção amorosa que só vai se satisfazer ao encontrar o outro.

A dependência amorosa não é uma dependência patológica, esse é outro problema. A dependência amorosa é um movimento natural do espírito humano. Muitas das frustrações amorosas, dos desamores, das infelicidades do nosso tempo se devem a essa incapacidade de entrar neste barco que adentra o reino dos mortos. “Aqui é um lugar que não conheço, nunca estive aqui antes.” Mas esse é justamente o movimento que Orfeu não tem medo de fazer. Mas nós temos. 

OLHAR PARA O MESMO LUGAR

Orfeu entra nesse território dos mortos procurando sua amada Eurídice, e não a encontra. Por isso, mais uma vez, ele pega sua lira e chora as dores de um coração que sangra, diante do fado, da fatalidade, do destino de não encontrar o amor da sua vida. Tocando sua lira, colocando todo o coração nela, cantando suas dores de saudade, daquele amor amputado logo no início, Orfeu comove o rei e a rainha das profundezas, Hades e Perséfone. Eles encontram um sujeito que pode amar. Esse sujeito é então presenteado: o próprio Hades encontra Eurídice e a entrega ao seu amado Orfeu. 

Ambos se reencontram no reino dos mortos e tudo se faz luz mais uma vez.  Eles se reúnem e voltam a ter um projeto. Isso acontece porque Orfeu não teve medo de entrar na barca de Caronte, neste reino desconhecido, e iniciar a busca de um amor que havia sido perdido.

Hades diz para Orfeu: “Vocês receberam um beijo dos deuses e podem voltar ao reino dos vivos, com uma única condição: a travessia de volta será realizada nas trevas, de tal modo que um não olhe para o outro. Se você olhar para ela, Eurídice retornará ao reino dos mortos e vocês nunca mais se encontrarão.”

Eurídice e Orfeu então caminham em direção ao reino dos vivos, voltam por aquele rio, entram mais uma vez na barca, agora no caminho inverso. Já encontrando a luz do reino dos vivos, quase chegando ao projeto de união final, Orfeu ouve um soluço, surgem dúvidas, e ele volta seus olhos para trás, procurando Eurídice. Ele a vislumbra, e ela imediatamente é abraçada por um emissário de Hades e some nas trevas. Sumindo nas trevas, Orfeu se desespera ao perder definitivamente o amor da sua vida, e mais uma vez toca sua lira num pranto profundo, mas agora definitivo. 

Essa é uma dinâmica do amor. Os casais se perdem em algum momento da sua trajetória amorosa, ou pela rotina, ou porque se desencontram, ou por alguma negligência. E esses casais temporariamente perdidos, num momento de desunião, mas que ainda se amam e querem se encontrar, começam a olhar demais um para o outro, fazendo que a morte volte a aparecer. Para que possam se reencontrar e retomar o projeto amoroso, os dois têm de, juntos, sem se olhar muito, mirar num projeto externo a eles, mas para o qual ambos caminham. 

Não sabemos que projeto é esse. Na vida concreta, varia caso a caso. Pode ser um projeto profissional, amoroso, de educação dos filhos… As pessoas têm de encontrar algo fora e não se olharem exageradamente umas às outras. Ou seja, ambos precisam ter sobre o que falar, mas de algo que esteja fora deles, porque estão experimentando exatamente uma crise, e é justamente isso que faz com que se distanciem. Se o homem em crise começa a olhar para a cara da mulher e a mulher a cara do homem, é ruptura e morte na certa. O Hades volta e abraça, levando ao reino do isolamento total.

FADO, SAMBA E BOSSA NOVA

Aí você me pergunta: “E quem está sozinho, olha para onde?”. Bem, existe uma evolução que iremos entender. Orfeu é um dos padroeiros da música. Ele canta, em certos momentos, suas alegrias, em outros, suas tristezas. No Hades, Orfeu toca como se estivesse fadado a um destino de saudade, dor e sofrimento. Ora, o fado português dá as mãos a um outro gênero musical profundamente nacional.

O fado canta uma realidade humana: o olhar para a vida como se tudo fosse um destino de tristeza, de saudade e de sofrimento. O fado de Lisboa – não o de Coimbra –, cantado por Maria Severa, Amália Rodrigues, Dulce Pontes, transmite um certo desespero, uma desesperança, uma tristeza, como se estivéssemos fadados à saudade e ao sofrimento. 

Quando esse gênero musical desembarca nas terras em que, à primeira vista, “tudo o que se planta dá”, ele encontra um espírito que acrescenta um cinismo, uma falsa esperança a essa visão de tristeza e sofrimento. É isso que o samba-canção canta: a todo instante uma esperança já meio desesperançosa, de um sujeito que combinou ao longo de todo o ano com sua amada de tecer fantasias e cocais, até chegar ao final da avenida. Mas ele sambou pela avenida inteira e, ao chegar ao final, não a encontrou. A esperança do sujeito acaba e ele canta justamente essa falsa esperança por cima do fado, sem acreditar na felicidade; canta apenas por um alívio momentâneo que nunca resulta em felicidade com seu par.

O samba-enredo canta o sujeito que samba ao longo de toda a avenida, que beija todas que o aceitam porque sabe que, ao cabo de dois ou três dias, a realidade de uma quarta-feira cinzenta o encontrará e toda a esperança de felicidade chegará ao fim. Essa é a visão desesperada do samba-canção e do samba de enredo, que dão as mãos um ao outro. Esse gênero é o que entra na cabeça de quem pergunta para onde deve olhar se está sozinho.

Outra aposta, posterior ao samba, é trazida pela bossa nova. Tom Jobim canta:

“Tristeza não tem fim
Felicidade, sim
A felicidade é como a pluma
Que o vento vai levando pelo ar
Voa tão leve
Mas tem a vida breve
Precisa que haja vento sem parar…”

A felicidade precisa ser soprada a todo instante por um vento, se não ela cai desgostosa, “como a gota de orvalho”. Essa transição do samba para a bossa é uma aposta num outro movimento que tem tomado a alma de muitos de nós brasileiros diante do amor. Olhando para o Orfeu, que perdeu seu amor definitivamente, olhando para as grandes fadistas de Lisboa, que cantam o amor que se foi, depois para o samba-canção e para o samba de enredo, que não mais acreditam no amor e que têm um olhar de cinismo diante do projeto, olhando tudo isso, para onde se dirige o olhar da bossa nova? 

A bossa nova se volta para o momento presente, para um carpe diem, como se dissesse “vamos aproveitar isto aqui, estas delicinhas do dia a dia”, e isso numa fala cantada, pois nem do virtuosismo da música operística eles precisam, não vale a pena, afinal, Orfeu cantou como cantou e não teve Eurídice. 

Se a voz não tem efeito nenhum, então, bem, vou falar cantando, com um banquinho e um violão, porque é o que basta. Já não quero mais projetos, já não quero mais entrar no reino dos mortos ou atravessar na barca de Caronte, não quero ter a esperança de um amor profundo. Basta isso aqui, pois o final “é pau, é pedra, é o fim do caminho… são as águas de março fechando o verão”. Essa é a história.

NÃO EVITE A TRAVESSIA

Você está sozinho porque esse espírito da bossa nova entrou no seu coração, essa coisa de “Ah, as relações são transitórias, afinal é uma garota, é a coisa mais linda que eu já vi passar, mas ela vem e passa, é coisa que não se distingue”. Esse é o espírito da bossa, do banquinho e do violão. Já eu preciso me exercitar, preciso unir o coração e a boca, e um banquinho um violão e um suportezinho vocal não dão conta. 

A bossa  nova canta o olhar trivial diante do profundo, o olhar preguiçoso diante de algo que demanda energia e potência. A bossa canta essa desesperança do amor humano, apostando na trivialidade cotidiana e vulgar de Ipanema. Isso é a bossa. Miseravelmente, infelizmente, ela dominou seu coração. Com isso não quero dizer que você não possa ouvir bossa nova, é bom ouvir de vez em quando, mas saiba que o movimento é esse: Orfeu toca o fado, que toca o samba-canção, que se exalta no samba de enredo, e se derrama num cinismo, num amputamento cantado pela bossa nova. Esse é o motivo pelo qual as pessoas, no fim das contas, vivem um amor tão superficial, tão vulgar, que não entrega aquilo que promete: um coração que se derrama sobre o outro.

Não tenha medo de fazer como Orfeu e atravessar esse rio conduzido pela barca de Caronte, levando até um território ainda desconhecido, mas que promete aquele amor de projeto, de projeção, no qual os dois, caminhando juntos, lado a lado, abraçando-se, sentindo-se um ao outro, olham na mesma direção, porque esse é um dos elementos do amor: o projeto comungado por vidas que se laçam, que se entrecruzam, que são tecidas umas nas outras com o próprio coração.

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