A COVARDIA É A NOVA CARIDADE

Nunca me esqueci de um encontro que tive certa vez com um médico de renome, anos atrás. Tínhamos ido juntos conversar com uma autoridade e lhe pedir que nos cedesse um espaço para realizar um trabalho. Os detalhes não vêm ao caso, mas o fato é que, lá pelas tantas, esse médico (um sujeito mais velho e de alta categoria) começou a tergiversar e a dizer umas coisas realmente muito frouxas, que contrastavam com a posição que ele ocupava. Aquilo me marcou, me deixou uma imagem, e eu então lhe disse, sobre a questão da caridade e da justiça, que um dos males do nosso tempo é que os pastores, aqueles que têm o dever de proteger as ovelhas, de proteger os mais fracos, decidem, por covardia camuflada de caridade, fazer carinho nos lobos e cuidar mais deles do que das suas ovelhas. Preocupam-se mais com quem está de fora do redil do que com quem está dentro. 

Se você observar, isso acontece o tempo todo.

Um pai ou uma mãe de família que está mais preocupado com a opinião do vizinho, em agradar olhares anônimos no supermercado, na pracinha, no clube, quando seu filho se comporta de um modo indesejável, é um pastor covarde, porque nosso primeiro dever é o de justiça para com aqueles que estão abaixo de nós — é o dever de cuidar das ovelhas, ainda que para isso precisemos espancar os lobos.

Estamos numa era em que temos de abraçar árvores, escrever um livro, fazer um filho e cantar Imagine. Um tempo de “abaixo as armas”, um tempo em que toda a natureza bélica deve ser revogada. Estamos na era da covardia. Se o momento pedir para enfrentar os lobos, como devemos agir? Furtando-nos àquela que é a nossa posição no mundo? A caridade é sempre o maior valor, mas ninguém deveria confundi-la com sua própria covardia. Você não pode ser “caridoso” com o lobo, quando a ovelha (seu empregado, seu filho, seu amigo, sua esposa, seu marido) está em perigo. 

Precisamos sempre olhar ao redor para ver se, por covardia, deixamos de defender quem tem de ser defendido; se, por omissão, estamos nos furtando a nosso papel neste mundo. Jamais caia na balela de que “ser bonzinho” é uma virtude. Nem sempre. São poucos os valores absolutos; em geral, a vida humana se desenvolve na articulação entre as circunstâncias concretas e os valores. Vivemos dentro dessa articulação entre as normas gerais e as situações concretas que a vida humana nos apresenta. Aquele que é pautado só por grandes teorias e pela norma geral escapa da natureza da vida humana, escapa da matriz onde a vida humana se desenvolve. Não é ser humano. O amor, a caridade, é o grande princípio, mas articulado com a sua circunstância concreta, articulado com a sua vida de hoje, a sua vida presente. Se você entra no quarto e vê um sujeito estrangulando seu filho, você vai se embolar com ele e até matá-lo, se for preciso. É isso que a justiça pede, essa é a caridade que se apresenta para você naquele momento.

Portanto, jamais defenda os lobos, ainda que você saiba que as ovelhas continuarão fiéis se você desonrar o seu papel e traí-las. “Minha esposa me ama, então vai entender por que eu não a defendi naquela circunstância.” Cultive dentro de si uma força, um olhar específico. Sempre que um pequenininho – que pode ser qualquer um – precisar da sua força, ainda que na sua cabeça deformada pelo modernismo e pelo pacifismo do nosso tempo você ache que não deva sacar suas armas, cuidado. Você está sendo covarde, está ainda no subsolo moral da existência humana. Não é ainda um sujeito útil, um sujeito que importa, com quem podemos contar.

A VIDA ACONTECE NA ARTICULAÇÃO ENTRE A NORMA GERAL E A CIRCUNSTÂNCIA CONCRETA

A força moral nasce na articulação entre a norma geral e a circunstância concreta. “Não matarás” depende da circunstância concreta, que é onde se desenvolve a vida humana. O sujeito que se pauta só por normas gerais está escapando à densidade da vida real. É o sujeito que vai olhar para trás, no leito de morte, e dizer: “Quem viveu esta porcaria?”. Não há substância humana, não há densidade do real, não há um homem ali dentro, não há uma psique articulando as coisas. É um sujeito fugaz e evanescente, cuja vida lhe escapa pelas mãos.

Ninguém deveria se permitir viver desta maneira. As ovelhas na nossa vida devem sempre ser cuidadas. Não tenha medo de combater os lobos da nossa existência. É para isso que o pastor serve. Desonrar esse papel é jogar a vida fora — é encaminhar-se para o leito de morte sem nada nas mãos. Mesmo o sujeito mais insignificante é pastor de alguém nesta vida. Você é pastor na vida do seu filho, do seu marido, da sua esposa, dos seus funcionários, às vezes do seu chefe também, e de todos os seus amigos. Você tem o dever de defendê-los. É para isso que estamos aqui neste mundo.

Esse assunto foi abordado no Caderno de Ativação #6, do Guerrilha Way. Para ter acesso a esse conteúdo, acompanhado de materiais de apoio e exercícios, torne-se assinante hoje mesmo: https://guerrilhaway.com.br 
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