VOCÊ PRECISA DO SUPÉRFLUO PARA SER HUMANO

Sempre ouvimos sacerdotes e pastores afirmarem que temos de evitar as coisas supérfluas, que o supérfluo faz mal, que o supérfluo não é bom, que ele vai contaminar nossos desejos, que vai encher nossos corações de quinquilharias, e por aí vai. Recebemos a mesma lição dos nossos pais, enquanto crescíamos. E isso mostra que a noção que em geral as pessoas têm do supérfluo está ligada somente ao campo material.

Mas precisamos reposicionar o supérfluo na nossa vida, por um único motivo: se entendermos o supérfluo como aquelas coisas absolutamente desnecessárias, vamos chegar a conclusões erradas e realmente perigosas para a vida do espírito

Imagine que só as coisas realmente necessárias vão entrar na nossa vida; a partir de hoje, vamos pegar só essas coisas para colocar no nosso dia a dia. Sabem o que vai sobrar para você? Uma vida de cão, de bicho, de tatu-bola, de serpente. Esta não é a vida humana. Só os animais lidam apenas com as coisas necessárias.

Se fôssemos lidar só com o que é necessário, precisaríamos só de pão, água e da graça de Deus. Mais nada. A verdade é que você não aguentaria uma semana. O supérfluo faz parte da vida humana, é fundamental para que a gente seja ser humano. 

Precisamos aprender quais são os supérfluos que devem entrar na nossa vida. Se abrimos mão de tudo, deixamos de ser humanos e viramos bichos. O supérfluo é necessário para que você seja um ser humano.

Por exemplo, decoração de casa é necessário? Óbvio que não. Basta ficar embaixo da ponte, ou numa caverna, que está bom. Você precisa fritar o bife? Não, é possível comê-lo cru. A culinária não é necessária. Com isso vamos entendendo que o ser humano não se faz só entre as coisas materialmente necessárias. Inclusive, o sujeito religioso que começa a abandonar tudo que seja supérfluo vai cair no materialismo. 

Para que o ser humano vá alcançando a perfeição, ele precisa, por exemplo, de elementos de arte. O que são as pinturas na parede de vários grupos tribais? São desenhos de coisas superiores. Por que um homem da tribo, que tem um leão querendo comê-lo, uma onça mordendo o seu calcanhar, que está com o teto da caverna desmoronando, resolve fazer pinturas? Porque o supérfluo é necessário para a vida humana. O sujeito que abre mão de tudo que é supérfluo, por motivos inclusive de desculpa religiosa, vai cair no materialismo. São Francisco, por exemplo, estava absolutamente conectado com a religião, com Deus, com a arte, com a caridade etc. 

Se você abandonar tudo o que é supérfluo, vai cair no materialismo. E, se você vira um materialista, se quer tudo o que o mundo material pode lhe dar, você também mata a vida do espírito. Existe o supérfluo fundamental: todo o campo da beleza, da arte, da cultura. Esses “supérfluos” são absolutamente necessários para que haja vida humana.

Se você começar a notar que na sua vida há um elemento de tristeza, de não progressão, de muita rigidez, pode ter certeza de que está faltando o supérfluo necessário. E que supérfluo necessário é esse? Provavelmente estão faltando elementos do mundo da arte, da cultura, da diversão, do hobby, da convivência sadia. Esses supérfluos são necessários para a vida humana. Se abandonamos esses supérfluos, nossa vida vira um porre; perdemos o elemento humano da beleza, do convívio, que, no limite, é o elemento do amor. O sujeito que abandona todos esses supérfluos vai acabar abandonando a vida humana. Ele vai abandonar sua vocação, o sentido da vida, o convívio com os seus, a própria religião. 

É evidente que certo supérfluo é necessário. Quando você deixa de dar esmola para o mendigo, com a desculpa de que ele, na verdade, não vai usar aquele dinheiro para comprar comida, eu pergunto: é só de pão que vive o homem agora? Você por acaso só come? Você não faz a unha, o cabelo? Não compra quadro para decorar a casa? Não compra gim e tônica para poder se divertir com as amigas no fim de semana? Por que o mendigo tem de só comer? Pensando assim você está afirmando que ele não é gente, é bicho. Bicho, sim, só come. Quando você fala que é absurdo o mendigo comprar pinga com o dinheiro, não percebe que o absurdo está em você. Absurdo é você querer condenar o sujeito, que já está na merda, a uma vida animal. Gato, tatu-bola e serpente só comem. Eles só fazem isso; não fazem a unha, não colocam lacinho no cabelo. Você é que coloca lacinho no cachorrinho e o humaniza. Sem problemas com isso. Mas por que, ao mesmo tempo, você quer bestializar um ser humano? Se o mendigo compra cachaça com o dinheiro, glória a Deus!, vai aliviar o sofrimento infinito de não ter uma casa, de estar numa situação de merda. Se ele comprar Oreo, ótimo!, tem de comprar sobremesa mesmo. Vai comer só arroz, feijão e frango? Que coisa de maluco!

O ser humano precisa do supérfluo. Alguns idiotas, inclusive religiosos, falam que a Igreja Católica tinha de vender todas as artes que possui, ou que os protestantes tinham de vender todos os templos, para pegar o dinheiro e matar a fome dos africanos. Mas o que uma coisa tem a ver com a outra? O que tem a ver tirar a arte, a arquitetura, a beleza, a cultura, o elemento de reunião, de congregação, de congraçamento? Retire isso, e imediatamente vai todo mundo passar fome! Se você tira os elementos propriamente humanos da civilização, vai todo mundo passar fome no minuto seguinte, porque todos vão virar bichos.

O supérfluo é necessário para que haja vida humana. Sem a ascensão da beleza, da cultura, da música, viramos bichos. Tudo isso é fundamental para que haja vida humana. Claro que precisamos de museus, de cultura, de teatro, de artes plásticas etc. Sem essas coisas não há ser humano. Desde as primeiras tribos os seres humanos pintam na parede, tocam música. Isso é um sujeito olhando para si e falando: “Se não cultivo essas qualidades em mim, não há distinção entre mim e um tigre”. Realmente, os animais só atendem às suas necessidades fisiológicas. É uma coisa estúpida um ser humano dizer que vai viver só de pão e água. O que vai acontecer é que ele vai perder a condição humana no minuto seguinte, mesmo que ele ache que está fazendo isso por um caminho religioso. Se ele começa na religião assim, vai perdê-la imediatamente. Para poder abandonar todas essas coisas, é necessário um estofo de contemplação da beleza, da virtude, de convívio humano, de cultura; aí dá para abrir mão dessas coisas, porque ele já aderiu ao supérfluo necessário, que é a vida do espírito. Mas se o sujeito começa antes pelo caminho do abandono, está frito e mal pago.

Então, cultive os elementos de beleza. Você tem de, de vez em quando, parar um pouco e comer brownie no shopping, passear e ver vitrine. Esse supérfluo é necessário. É necessário cultivar algo da beleza, ver vitrine bem bonita.

“Mas, Italo, isso é necessário?”

Meu filho, necessário é mijar e cagar. O resto todo não é. É necessário você estar vestida? Não. Mas mesmo assim você está. É claro que você tem de cultivar esses elementos de beleza, de contemplação de coisas belas. Com isso você fica mais gente. O elemento de relaxamento é necessário para a vida humana. O sujeito que anda sempre atarefado, preocupado com as “coisas necessárias”, está frito. Tem de haver o elemento de contemplação da beleza, da verdade, da calma.

Então, mulherada, quer saber por que a sua vida está uma porcaria? Porque você não pára um único minuto. Você tem de parar e ir tomar café com as amigas. A vida vai dar uma relaxada.

“Italo, eu só faço isso e está uma bosta.”

Aí é porque você está fugindo do compromisso, que é o que tenho falado sempre, diariamente. Eu sempre falo “cumpra, seja forte, faça o que tem de fazer…” O que estou falando agora é que há mais uma coisa que você deve fazer: cultivar os elementos estéticos, da cultura. Este é o supérfluo necessário. Sem isso, não tem vida humana, vida do espírito, bondade. Você não vai ser nada e vai cair no materialismo.

A vida humana é articulação: você tem de articular as coisas. Se você só vai para o caminho do supérfluo, vai para o supérfluo desnecessário e acaba caindo no campo do hedonismo. E quem quer abrir mão de todos os supérfluos da vida vai para o caminho do materialismo. Os dois deslocamentos são horizontais. Seguindo o hedonismo (prazer, prazer, prazer…), você esquece que existe a vida do espírito, de serviço, de toda a dedicação que deve ter no mundo. E, seguindo o materialismo, você vai ficar muito triste.

Algo de supérfluo temos de cultivar. Temos de saber escolher os supérfluos necessários: todo o campo da beleza, da arte, da convivência saudável com amigos e familiares, de dar uma bebidinha de vez em quando. Você vai conquistar esse supérfluo necessário para que haja vida humana. Se não tivermos esses elementos na nossa vida, ela vai ficar muito triste. Eu conheço gente muito boa, que achou que podia abandonar tudo, e só se ferrou, perdeu a vocação, a fé etc. É claro, a pessoa está querendo entrar antes de ter estrutura. Para o sujeito poder chegar a abandonar tudo, como um São Francisco, é preciso estofo. Já tem de ter aprendido a contemplar, já tem de ter todos os elementos da beleza dentro dele, já tem de ter religião etc. Por enquanto, não faça nada disso.

Você deve cultivar os elementos da beleza, deve ter um hobby, deve comprar coisas fúteis de vez em quando. Por que não? Quando faz isso, você toca na descontração, na verdade, na bondade, e o espírito ascende.

Por outro lado, se você só faz isso, vira um hedonista e cai. Aqui estou falando de um movimento de ascensão e de um de queda. Temos de aprender o equilíbrio disso.

Voltando ao exemplo do mendigo: se você fica bravo porque ele não comprou comida com o dinheiro que você lhe deu, você, no fim das contas, está sendo um tremendo filho da mãe. Você está julgando o mendigo como se ele fosse um bicho pior do que o seu cachorro. Para o seu cachorrinho você compra brinquedo, lacinho etc. Por que o mendigo não pode comprar bala, ou pagar gatonet para ver seriado no Netflix? Ele não só pode como deve. É isso que vai tirá-lo da condição de mendigo. O mendigo está numa fronteira: é um sujeito que quase perdeu toda a dignidade, mas ainda é uma pessoa. Quando você o deixa fazer o que quiser com o dinheiro, está dando vida humana para ele. Mas se você não der para ele outra coisa senão comida, você é um filho da mãe, um cretino, um animal. Você está condenando, no teu coração, aquele mendigo à animalidade. 

Faz parte da dignidade humana o cultivo de supérfluos necessários, e é isso que temos de buscar, tanto para a nossa vida quanto para a do outro. Então, dê esmola para o mendigo, isso vai fazer um bem danado para você. Em geral, temos a perda do olhar humano porque estamos sempre julgando os outros — ou julgamos que o outro não vale nada, ou que ele é um cretino, ou que é um bicho. Quando você dá dinheiro na mão do mendigo para que ele faça o que quiser, queima dentro de si a confusão do olho que não vê uma pessoa do outro lado.

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