CRIME E CIVILIZAÇÃO: OS ESTRAGOS DA GLAMOURIZAÇÃO DO BANDIDO

Na série, em nenhum momento você torce pelo mal, pelo crime ou pelo bandido. Pelo contrário, os fatos são mostrados do jeito que tem de ser mostrados: há um lado negro muito profundo em usar drogas e se meter nessa vida do avesso que a criminalidade oferece

O que temos visto há um tempo é a audiência sendo levada a torcer pelo bandido. Ficamos tristes quando um plano qualquer do criminoso dá errado e ele acaba se dando mal. Somos induzidos a simpatizar com as inclinações e os interesses do bandido. Quando as coisas não saem do jeito que ele espera, ficamos tristes, como se a intenção dele não acarretasse nenhum sofrimento a muitos inocentes. 

Em Dom, não é isso que acontece. Você fica preocupado com a vida dos bandidos, porque há uma família se desfazendo e uma rede criminosa se estabelecendo – a série mostra a entrada das drogas no Brasil nos anos 60 –, mas você não torce pelo crime. Nesse sentido, é possível dizer sem medo que a série cumpre os requisitos de uma história bem contada: numa história bem contada, há um ajuste entre a realidade  e os sentimentos que ela desperta. 

DOM vs. PEAKY BLINDERS

Todo mundo tem um familiar que entrou para o universo das drogas, e sabe os problemas que isso causa. Ninguém duvida que é um universo que traz uma série de sofrimentos agudos. Por isso, quando se tenta contar uma história deslocando-se a percepção da realidade mesma, acontece uma desinformação, uma deseducação: a história contada torna-se um desserviço prestado ao imaginário. O imaginário tem de ser ajustado à estrutura da realidade. Na série Dom, isso acontece perfeitamente, o imaginário se ajusta à realidade por meio de um retrato muito bem dirigido. 

Claro que há muitas cenas de sexo e de violência, mas como se pode retratar o universo das drogas sem isso? Em uma cena escatológica, uma personagem urina na calçada, e muita gente diz que não havia necessidade de mostrar esse tipo de coisa, mas essa não é minha opinião. Ao assistirmos a esse tipo de cena, não aderimos ao ocorrido achando-o maravilhoso e querendo imitá-lo; é justamente o contrário. Achamos uma porcaria que uma menina bonita se preste a um papel tão degradante e se torne assaltante de residências. 

Na série, mostram-se os efeitos reais que as drogas e a vida de crimes causam, sem nenhum tipo de glamourização. Nos filmes e séries sobre isso, hoje em dia, há sempre a glamourização do bandido. Isso não acontece em Dom. Pedro Dom, protagonista da série, entra para o crime, começa a fazer uma monte de assaltos, rouba várias coisas, mas não goza, em momento nenhum, da grana que está consumindo. As situações não nos são passadas como algo a se imitar, mesmo quando ele está com duas mulheres na cama. Tudo é apresentado sem a intenção de trocar, na cabeça da platéia, o normal da vida por uma postura sem pé nem cabeça. 

A coisa já não é assim, por exemplo, na série Peaky Blinders, onde a glamourização do crime é muito profunda. Depois de assisti-la, as pessoas saem apaixonadas por Thomas Shelby, que não passa de um psicopata frágil e inseguro. Já vi um monte de blogs e sites sobre masculinidade usando-o como referência. Quem faz isso só pode estar de sacanagem. O sujeito é um bandidinho vulgar, um psicopata sem sentimento nenhum, que acaba sozinho, passando o ano novo sem ninguém ao lado, completamente abandonado pelo irmão. 

O pessoal aponta Thomas Shelby como exemplo de cuidado com a família, um exemplo de obstinação e tenacidade. Só pode ser brincadeira! Peaky Blinders causa um desajuste muito profundo da realidade por causa da sensação que ele passa. O expectador é conduzido, por meio da história e da direção, a se apaixonar por um bandido estúpido, frágil, inseguro, medíocre, asqueroso, burro e cheio de complexos. A única coisa que ele faz de bom é ganhar algum dinheiro por um tempo. Quem assiste com calma percebe isso. Dizem que ele é frio e calculista. O caramba! Como alguém frio e calculista se apaixona pela espiã que o entrega? Ele é que acha isso de si mesmo, e o público se apaixona por esse pretenso traço, sem perceber que ele se deixa enganar. Mas ninguém percebe isso porque a história é contada de tal modo a causar na platéia um desajuste entre realidade e percepção.

Dom é infinitamente superior a Peaky Blinders. Chega a ser uma comparação desproporcional. Em Dom, a história é contada com o viés correto. Você sente as coisas de acordo com a realidade que elas são de fato. Você levanta do sofá mais ajustado ao mundo. 

O PAPEL DA ARTE NA CULTURA

Trabalhei em centros de tratamento, no setor de álcool e drogas, por um tempo. Convivi com dependentes e famílias desestruturadas, e sei que tudo que se relaciona a isso é um inferno. Glamour é algo que passa longe desse ambiente. O bandido que ganha algum dinheiro vendendo drogas tem um vida de merda, assim como os usuários e suas famílias. Todo dia, dezenas de pessoas levam seus familiares para o internamento. Todo mundo envolvido nisso está doente e desestruturado. As pessoas mergulhadas no vício têm uma vida completamente desregrada e dissolvida. Apesar de toda ajuda profissional, poucas pessoas conseguem reconstruir uma vida normal.

Por causa dessa destruição toda que a vida de usuário e de criminoso causa, qualquer obra de arte que retrate essas questões tem uma grande responsabilidade nas mãos. Induzir uma audiência a desenvolver as inclinações e expectativas na direção errada é, por si, em certo sentido, um crime. 

A arte tem um papel pedagógico fundamental na construção do imaginário de uma civilização. Se existe uma arte perversa, uma arte que desajuste a realidade da sensação e da percepção, a sociedade declina, decai e se torna burra e alucinada. Peças artísticas, como a série Dom, são fundamentais para o resgate de um imaginário saudável. Muitos religiosos reclamam que a série é horrorosa porque traz cenas de sexo e violência, mas não dá para contar esse tipo de história de outra forma; se você não quer ver violência e sexo na TV, não a assista, mas essa história só pode ser contada assim!

É muito bom que no cenário nacional tenha aparecido uma série de nível tão alto, justamente por não pretender causar um desajuste entre realidade e percepção. A audiência é educada para ter uma percepção, um afeto e uma cognição adequadas à realidade retratada. Por isso é importante absorvermos boa arte. O sujeito que não tem um repertório imaginativo suficiente terá pouca possibilidade de agir no mundo, por ter uma percepção limitada. Isso o levará a aderir a erros que vão deformar drasticamente sua personalidade. É uma guerra que precisamos vencer.

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